Por incrivel que pareça, a história começa no primeiro post. Nada de querer espionar e querer começar a ler pelo fim. Procure a primeira carta e divirta-se.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

1ª Carta

Brasília, 11-10-1983



Pedro,



Há quanto tempo não nos falamos, meu irmão? Sinto saudades e é uma pena que não possamos nos ver. Estou agora seguindo meus ideais e você deve ficar aí, seguir seu próprio destino. Se nosso pai fosse mais compreensivo... Bem, isso agora não é o que importa, não é? Escrevo porque não há mais nada que possa fazer agora. Não quero falar de política, guerra, violência, opressão. Não quero nem mesmo falar de liberdade ou igualdade. Quero falar de você, de mim, de nossa família, do que passou. Sinto-me nostálgico e não me lembro de ter me sentindo assim antes. Tudo culpa sua, seu besta.

Você lembra uma vez em que a gente era bem pequeno, acho que o Ezequiel nem tinha nascido ou tinha só alguns meses, em que choveu tanto que caiu a energia? Estava ventando muito lá fora e já era noite e nós deveríamos estar dormindo e, por isso, mamãe não veio com a lanterna ou algumas velas. Lembra o que a gente estava fazendo naquela noite? Cada um em sua cama, fingíamos que estávamos em barcos perdidos no oceano e que o lençol era a nossa única ligação. A chuva tamborilando na janela era um incentivo, mas quando o disjuntor estourou, o barulho que tudo fez lá fora e o fim das luzes foi motivos para você soltar um gritinho abafado, nada o suficiente para acordar a mamãe ou, pior, o papai. Eu disse que deveríamos dormir e você concordou, mas nenhum dos dois seguiu o conselho. Enfie-me inteiro debaixo do cobertor. Os trovões que ressoavam lá fora e a luz de cada raio me faziam tremer. “Homem ao mar!”, você gritou de repente, “Socorro, vou me afogar!”. Rindo, joguei o lençol para você e te puxei até a minha cama. Só então conseguimos dormir, você agarrado em meu braço e eu sentindo você quentinho e calmo.

Não está chovendo agora, pelo contrário, o tempo está bastante seco e o barro vermelho se gruda em sua roupa e pele em qualquer lugar que se vá, mas queria voltar àquela noite, onde qualquer medo podia se resolver com você dormir em minha cama. Era raro que você viesse pra minha cama – você era um menininho corajoso – e por isso mesmo havia noites, principalmente quando chovia lá fora, que eu deseja que você sentisse medo, só para vir aplacar o meu. Quando penso em você, me sinto egoísta. Sempre te quis do jeito que fosse melhor para mim, mas você sempre foi melhor do que eu podia pedir, mesmo que não para mim.

Resumindo: estou com saudades. Faz tempo que você não escreve. Como andam as coisas aí em casa? Papai está muito irritado com o fim que vem chegando? Tente não dar muitos motivos para ele se aborrecer agora, certo? Já deve ter muito por aí que o aborrece. Sabe que, apesar de tudo, ainda gosto muito dele. Talvez tenha feito escolhas erradas e, depois de um tempo, já não há mais voltas, mas ele lutou pelo que achava certo, exatamente como estou fazendo. Só acho que ele se tornou cego, que não quis ver.

Viu? Aqui já estou eu falando de revoluções e política de novo. Não consigo evitar, sinto muito. Vamos voltar, então. Aquela sua namoradinha, Bruna, a quantas anda? Sei, sei, vocês são “apenas amigos”. Conheço essa história. Acredite, é bem mais velha que você! A Violeta também sempre me pareceu apaixonada por você. Não vá sair por aí quebrando corações, certo?

A caixa que estou mandando junto é um presente. É a fita de uma banda nova que surgiu aqui e promete muito. O nome era Aborto Elétrico – sei, péssimo -, mas agora eles se chamam Legião Urbana e tem umas músicas bem interessantes. Ouça. Não é nada censurável e bem gostoso. Falando nisso, já comprou o novo LP do Guns and Roses? Não consigo encontrar por aqui.

Mudando um pouco de assunto agora. Lembra-se da Carla, filha da professora de Geografia? Então, encontrei-a aqui, em meio a toda essa confusão e agora estamos namorando, ou qualquer coisa assim. É algo meio instável, mas sei que ela gosta de mim e nunca senti nada assim tão forte. Se pudesse, gastaria todo o meu tempo só a beijá-la, ouví-la, tê-la em meus braços para abraçar e apertar. Como é bom estar apaixonado!

E como anda o seu coração? Como você pode não ter ninguém? Certo, sou carente. E cada vez mais vejo o quanto preciso dos outros. Não sei ser feliz por mim.

E se eu falar que estou chorando agora? Merda, Pedro, não sei mais o que estou fazendo aqui. Quero agir, fazer mudar esse país, o mundo como está. Mas será que tinha que ser assim? Não queria ter de brigar com meu pai, minha família, ir pra longe dos meus amigos pra vir aqui e levar porrada. E as vezes tudo parece tão inútil. Mas isso vai acabar, tudo vai acabar e, num país livre, eu volto pra casa. Pra junto de você, do papai, de todo mundo.

Eu vou parar por aqui, já chega de sentimentalismo por hoje. Mande um beijo para todo mundo, a mamãe, a Maria Rosa, o Ezequiel e a Andrea, essa louca. Se papai não for se zangar muito, mande notícias minhas para ele também.

Um abraço bem apertado do seu irmão que te adoro,

Luis Carlos Tavares.

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