Por incrivel que pareça, a história começa no primeiro post. Nada de querer espionar e querer começar a ler pelo fim. Procure a primeira carta e divirta-se.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

3ª Carta

São Paulo, 5 de outubro de 1984



Meu querido Pedro,



Primeiro peço desculpas por estar escrevendo à maquina, mas você conhece a minha caligrafia e como ela fica ainda pior quando estou nervosa, como agora. Sei que nos vemos na escola todos os dias e que é estranho eu estar te escrevendo uma carta que vou te entregar em mãos, mas as palavras, que parecem sempre me servir tão bem nas discussões racionais me fogem sempre que tento falar do que vou escrever agora. Sei que sou boba.

Eu e o Carlos terminamos ontem. Não. Eu terminei com ela. Talvez você já saiba. O provável é que ele tenha te contado logo que tudo aconteceu. Duvido, porém, que ele tenha te contado o porquê. E é isso que quero explicar agora.

Fomos nós quatro desde sempre. Quase todos os dias, nos momentos felizes, nos difíceis. Sempre estivemos juntos. Mas VOCÊ - sei que não devia falar isso, mas agora não me importo – é mais importante. Por favor, não fique chocado, já devia esperar. Afinal, foi você quem passou a noite no hospital comigo quando minha mãe teve que operar e quando eu operei o pulso. Foi você, mal ou bem, quem me deu o primeiro beijo. Você esteve lá em todos os momentos, o melhor amigo que se pode ter. Mas isso não é um pensamento só meu. Todo mundo que te conhece, e principalmente eu, o Carlos e a Vi, acha que você o máximo! Mas eu te acho ainda mais especial.

Acho que já eu para entender, não é? A verdade é que ninguém antes, tirando seu irmão e as brincadeiras dele, suspeitou que seriamos o que somos hoje e fomos desde que nos conhecemos: apenas amigos. E, sendo assim, não deveria haver nenhum problema quando você e a Violeta começaram a namorar, afinal, dois de meus melhores amigos estavam tão completamente felizes! Mas me doeu, por mais que eu não quisesse. Detestei Violeta e te detestei, mesmo gostando tanto de você. Ai o Carlos me pediu em namoro e eu aceitei. Quem sabe assim não seria mais fácil te esquecer? Mas não foi. Eu sempre deixei tudo muito claro pra ele. Que gostava dele, e muito, mas que não tinha certeza se poderia amá-lo totalmente, e ele sempre me aceitou. Acontece que cada carinho, cada beijo, cada palavra ao pé do ouvido nunca foram para ele. Foi tudo por você.

Agora está dito, não tem mais volta e, mesmo se tivesse, eu não quero mais.



Eu te amo, Pedro, com todo o meu infinito e estúpido coração de adolescente.



Por favor, não me de desculpas idiotas, não diga que somos amigos demais ou que não é bom o suficiente para mim. E não estrague sua felicidade ou a de Violeta se meu amor for platônico. Acredite em mim, posso sobreviver a isso. Só não agüento mais mentir para você, pro Carlos, pra todo mundo! Precisava que você soubesse de tudo.

Sinto-me boba fazendo tudo isso. Eu, a “menina racional”. Não sabia que amar alguém era tão forte assim. E, mesmo que eu não seja correspondida e que doa, é bom.



De sua amiga para sempre, independente de tudo,



Bruna Marques

2ª Carta

Paris, 20 de setembro de 1984



Irmãozinho,



Pela primeira vez experimento o verdadeiro sentimento da palavra “liberdade” e descobri que ela nada tem haver com não ter responsabilidades ou não ter compromissos. Há dois meses estou em Paris, há um comecei meus estudos e faz quase um mês e meio que comecei a trabalhar num café que a coisa mais linda. Desculpe por não ter escrito antes, mas quase não tive tempo e, pelo menos nesse comecinho, não queria usar muito o português. Acredita que nesse tempinho meu francês já ficou bem melhor? E que língua linda! Parece que a qualquer momento alguém pode fazer uma declaração de amor ou recitar uma poesia. Admito que, de um modo geral, os franceses não são muito simpáticos, mas há as exceções, pessoas realmente fantásticas.

Paris é linda! Melhor do que imaginávamos – lembra da nossa brincadeira de fazer tours pelas cidades do mundo a fora? – e muito mais bonita que nas fotos. Não moro no centro da cidade, o aluguel lá é exorbitante, mas tudo é bem perto de metrô e até mesmo de bicicleta ou a pé. A torre Eiffel, visão que te segue em todos os lugares da cidade, é fabulosa e a vista de lá, de tirar o fôlego. Assim como a subida, tenho que dizer. São quase 700 degraus. Mas vale à pena, não tenho a menor sombra de dúvidas. Onde quer que se vá há um museu, um pequeno ateliê, um café charmoso ou mesmo uma simples pracinha que é um encanto. Adoro andar por aí prestando atenção a todos, só para ver se encontro algum brasileiro. E não é que não é tão difícil?

Voltando à liberdade do começo da carta: pela primeira vez não tenho papai me dizendo todo o tempo o que fazer nem mamãe seguindo cada um de meus passos. Não há mais freiras regulando o tamanho de minha saia ou o modo como prendo meu cabelo. Não imagina a felicidade que é poder me maquiar do jeito que quiser, por uma roupa que deixaria mamãe de cabelos em pé e sair, nem que seja só para dançar. E eu tenho que te contar um segredo que você tem que proteger com a sua vida: eu experimentei maconha. Não é nada como os “adultos” pintam e a “viagem” – é assim que eles contam – foi boa demais. O problema é que passei o dia seguinte inteiro vomitando e com uma dor de cabeça terrível, como se tivesse me embebedado. Não está nos meus planos tentar de novo, principalmente porque eu sei que faz mal, apesar de ser bom. Só de ver o menino que me ofereceu já é um motivo para você desistir. Ele é mais novo que eu e já está todo detonado. Não é o que eu quero para mim, pode relaxar.

Agora chega de falar de diversão e vamos falar de coisas sérias: a faculdade. A Europa tem uma tradição fantástica no teatro e não poderia ter escolhido um lugar melhor para estudar que a terra de Mollièr. Da teoria à prática, tudo me comove, envolve, domina. Sou de corpo e alma apaixonada pelo teatro. Na semana que vem faço o teste para o grupo da faculdade. Torça por mim!

Mesmo que ainda haja milhares de coisas que posso te contar e que sinta vontade de te dizer tudo, não vou mais falar de mim. Recebi sua carta e fiquei preocupada. Como assim você vem brigando com o papai? O que está acontecendo ai? Queria te ligar, mas o preço da ligação deixa isso impossível! Não faça nenhuma besteira por você nem por ninguém. Você é o irmão mais velho agora, o que servirá de exemplo. Você sempre foi o mais certinho, continue assim.

Certo, algumas coisas boas: Como está a Violeta? Recebi uma cartinha bem meiga dela no outro dia. Vocês inda estão juntos? Ela me parece tão bobinha para você! Acho que você precisava de uma garota mais forte, mais decidida! Mas eu não tenho que me meter nisso, já sei.

Termino aqui antes que me alongue até o infinito – você bem sabe que tenho essa tendência.

Mil beijos, abraços, apertos na bochecha e, para não perder o costume, uns três pontapés.



De sua irmã mais francesa,



Andréa Tavares



P.S.: Quase que me esqueço: ESTUDE!

P.S.2: Te amo, pequeno, e, mesmo do outro lado do oceano, ainda penso em você todos os dias.

1ª Carta

Brasília, 11-10-1983



Pedro,



Há quanto tempo não nos falamos, meu irmão? Sinto saudades e é uma pena que não possamos nos ver. Estou agora seguindo meus ideais e você deve ficar aí, seguir seu próprio destino. Se nosso pai fosse mais compreensivo... Bem, isso agora não é o que importa, não é? Escrevo porque não há mais nada que possa fazer agora. Não quero falar de política, guerra, violência, opressão. Não quero nem mesmo falar de liberdade ou igualdade. Quero falar de você, de mim, de nossa família, do que passou. Sinto-me nostálgico e não me lembro de ter me sentindo assim antes. Tudo culpa sua, seu besta.

Você lembra uma vez em que a gente era bem pequeno, acho que o Ezequiel nem tinha nascido ou tinha só alguns meses, em que choveu tanto que caiu a energia? Estava ventando muito lá fora e já era noite e nós deveríamos estar dormindo e, por isso, mamãe não veio com a lanterna ou algumas velas. Lembra o que a gente estava fazendo naquela noite? Cada um em sua cama, fingíamos que estávamos em barcos perdidos no oceano e que o lençol era a nossa única ligação. A chuva tamborilando na janela era um incentivo, mas quando o disjuntor estourou, o barulho que tudo fez lá fora e o fim das luzes foi motivos para você soltar um gritinho abafado, nada o suficiente para acordar a mamãe ou, pior, o papai. Eu disse que deveríamos dormir e você concordou, mas nenhum dos dois seguiu o conselho. Enfie-me inteiro debaixo do cobertor. Os trovões que ressoavam lá fora e a luz de cada raio me faziam tremer. “Homem ao mar!”, você gritou de repente, “Socorro, vou me afogar!”. Rindo, joguei o lençol para você e te puxei até a minha cama. Só então conseguimos dormir, você agarrado em meu braço e eu sentindo você quentinho e calmo.

Não está chovendo agora, pelo contrário, o tempo está bastante seco e o barro vermelho se gruda em sua roupa e pele em qualquer lugar que se vá, mas queria voltar àquela noite, onde qualquer medo podia se resolver com você dormir em minha cama. Era raro que você viesse pra minha cama – você era um menininho corajoso – e por isso mesmo havia noites, principalmente quando chovia lá fora, que eu deseja que você sentisse medo, só para vir aplacar o meu. Quando penso em você, me sinto egoísta. Sempre te quis do jeito que fosse melhor para mim, mas você sempre foi melhor do que eu podia pedir, mesmo que não para mim.

Resumindo: estou com saudades. Faz tempo que você não escreve. Como andam as coisas aí em casa? Papai está muito irritado com o fim que vem chegando? Tente não dar muitos motivos para ele se aborrecer agora, certo? Já deve ter muito por aí que o aborrece. Sabe que, apesar de tudo, ainda gosto muito dele. Talvez tenha feito escolhas erradas e, depois de um tempo, já não há mais voltas, mas ele lutou pelo que achava certo, exatamente como estou fazendo. Só acho que ele se tornou cego, que não quis ver.

Viu? Aqui já estou eu falando de revoluções e política de novo. Não consigo evitar, sinto muito. Vamos voltar, então. Aquela sua namoradinha, Bruna, a quantas anda? Sei, sei, vocês são “apenas amigos”. Conheço essa história. Acredite, é bem mais velha que você! A Violeta também sempre me pareceu apaixonada por você. Não vá sair por aí quebrando corações, certo?

A caixa que estou mandando junto é um presente. É a fita de uma banda nova que surgiu aqui e promete muito. O nome era Aborto Elétrico – sei, péssimo -, mas agora eles se chamam Legião Urbana e tem umas músicas bem interessantes. Ouça. Não é nada censurável e bem gostoso. Falando nisso, já comprou o novo LP do Guns and Roses? Não consigo encontrar por aqui.

Mudando um pouco de assunto agora. Lembra-se da Carla, filha da professora de Geografia? Então, encontrei-a aqui, em meio a toda essa confusão e agora estamos namorando, ou qualquer coisa assim. É algo meio instável, mas sei que ela gosta de mim e nunca senti nada assim tão forte. Se pudesse, gastaria todo o meu tempo só a beijá-la, ouví-la, tê-la em meus braços para abraçar e apertar. Como é bom estar apaixonado!

E como anda o seu coração? Como você pode não ter ninguém? Certo, sou carente. E cada vez mais vejo o quanto preciso dos outros. Não sei ser feliz por mim.

E se eu falar que estou chorando agora? Merda, Pedro, não sei mais o que estou fazendo aqui. Quero agir, fazer mudar esse país, o mundo como está. Mas será que tinha que ser assim? Não queria ter de brigar com meu pai, minha família, ir pra longe dos meus amigos pra vir aqui e levar porrada. E as vezes tudo parece tão inútil. Mas isso vai acabar, tudo vai acabar e, num país livre, eu volto pra casa. Pra junto de você, do papai, de todo mundo.

Eu vou parar por aqui, já chega de sentimentalismo por hoje. Mande um beijo para todo mundo, a mamãe, a Maria Rosa, o Ezequiel e a Andrea, essa louca. Se papai não for se zangar muito, mande notícias minhas para ele também.

Um abraço bem apertado do seu irmão que te adoro,

Luis Carlos Tavares.